Leve e violento, descompromissado e emancipatório

Não, Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa não faz nenhuma ligação direta com o outrora conhecido como Universo Estendido DC (que praticamente NÃO MAIS EXISTE)! No máximo, uma foto do Capitão Bumerangue aqui, acompanhada do comentário: “Eu conheço esse cara!”, um taco de beisebol ali, e algumas peças de figurino que remetem ao malfadado Esquadrão Suicida. Também não temos participações especiais de ostensiva relevância. O Batman é rapidamente mencionado, a hiena (!) de estimação de Harleen Quinzel é por ela batizada de Bruce em homenagem àquele “ricaço bonitão”, o núcleo policial no qual a detetive Renee Montoya (Rosie Perez) trabalha não faz nenhuma menção à Gordon, Harvey Dent ou quem quer que seja, e vemos o Coringa filmado de costas, enquadrado no canto da tela, por dois ou três segundos, e NÃO é uma cena recuperada do “filme-catástrofe” acima citado, ainda com Jared Leto. Trata-se de um take novo, com um dublê em seu lugar, reproduzindo a sequência em que ele e Harleen emergem do tanque cheio de compostos químicos causadores do total embranquecimento de suas peles, colorização de seus cabelos e desvanecimento de suas mentes.

Este longa, inteligentemente, parte do princípio de que aquela obra de arte de 2016 faz parte de um passado completamente esquecível, e quem não o assistiu, não tem necessidade nenhuma de se submeter àquela tortura de duas horas, deixando isso muito claro desde os seus primeiros segundos de projeção. A origem da protagonista é contada, por ela mesma, desde sua fecundação (literalmente), e ilustrada por uma animação ágil, dinâmica e looneytunesca que percorre os principais pontos de sua história pregressa até chegar ao tempo presente. Sua formação acadêmica, o período em que trabalhou em um manicômio (sabemos qual é mas ele não é citado) e, por fim, sua emancipação do relacionamento abusivo com o… Pudinzinho.

A narração da Harleen, como não poderia deixar de ser, é muito louca (e fora de ordem cronológica), e isso, dependendo do ponto de vista do expectador, pode ser muito interessante. Basta comprar a ideia! À medida que os personagens vão surgindo em tela, seus nomes vão aparecendo em letras garrafais, e o criativo toque final em suas apresentações é a “queixa” que cada um deles tem em relação à Arlequina, pois essa garota já deu motivos a muita gente em Gotham para odiá-la. No público, o efeito é exatamente o contrário, é claro, pois Margot Robbie, que também é produtora do filme, está esplendorosamente amalucada, esbanjando seu carisma, e desta vez como protagonista absoluta.

O mcguffin da vez é um diamante, engolido pela delinquente juvenil Cassandra Cain (Ella Jay Basco), objeto desejado pelo vilão Roman Sionis, também conhecido como Máscara Negra (Ewan McGregor) e que, nesta versão, não tem seu rosto desfigurado em nenhum momento… só quando explode, no final. Acompanhado de seu fiel escudeiro Victor Zsasz (Chris Messina), esse, sim, que exibe com orgulho as cicatrizes pelo corpo, proporcionais às pessoas que já matou, o histriônico Sionis e sua gangue perseguem incansavelmente a pequena Cain, que passa a ser a “protegida” da Arlequina. Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell), a “talentosa” cantora da boate do gângster, e a impulsiva motoqueira que gosta de fazer uma entrada em grande estilo e dizer majestosamente: “Sou conhecida como… a Caçadora!”, vivida com ferocidade pela bela Mary Elizabeth Winstead, somam-se à Harleen, Cain e Montoya, e formam o grupo girl power mais bad ass já visto em um filme de super-heróis, que encaram os vilões de igual para igual, pra delírio da plateia, em cenas de ação dinâmicas e regadas à muita música Pop de qualidade (como “Barracuda”, da banda Heart), que não poupam o público da violência, ao mesmo tempo em que mantém o clima divertido estabelecido desde o início!

Aves de Rapina, portanto, com seu elenco entrosado, consegue a feliz proeza de ser, ao mesmo tempo, leve e violento. Mais do que isso, ele também se mostra agradavelmente descompromissado e acertadamente emancipatório! Em seu segundo longa-metragem (o primeiro foi a comédia dramática Dead Pigs em 2018), a cineasta chinesa-americana Cathy Yan mostrou personalidade conduzindo esta aventura para maiores, não apenas estrelado, mas também concebido por mulheres. A roteirista Christina Hodson (de Bumblebee), por sua vez, soube utilizar de toda a esperteza das protagonistas para elaborar diálogos e sequencias cujo contexto pode passar despercebido ao público masculino, mas vai de encontro ao público feminino que se identifica imediatamente com muitas das situações vistas na tela.

Ambientado em uma Gotham City ensolarada e colorida, vista dessa forma sob o ponto de vista da psicótica narradora da história, que discretamente quebra a quarta parede olhando para a câmera com expressões dignas de cartoons (o que, neste caso, é um elogio), o longa surpreende pela ousadia de algumas de suas escolhas, entre elas, as olfativas (!), e (re)introduz Arlequina às telonas fazendo jus à personagem, e à tudo o que ela representa, tendo se tornado um dos maiores ícones pop em tão pouco tempo. As Aves de Rapina propriamente ditas têm apenas uma rápida cena já no desfecho, e é só neste breve vislumbre que a Caçadora está usando máscara. Já o grito da Canário Negro, que ocorre um pouco antes, é audível o suficiente para testar o sistema de som das salas de projeção. Pode até ter faltado tempo para uma dedicação maior por parte do roteiro a elas, mas nada que uma continuação não resolva!  Ao seu final, Aves de Rapina: Arlequina e… deixa uma ótima impressão, nos faz esquecer daquele filme, e vislumbrar um futuro promissor para estas heroínas, anti-heroínas, vilãs, e tantos personagens de potencial que habitam a cidade do Homem-Morcego! O universo de mundos paralelos e independentes da DC está se mostrando, a cada nova produção, mais interessante!

Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa (Birds of Prey: And the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn). EUA, 2020, 1h 49min. Direção: Cathy Yan. Com: Margot Robbie, Ella Jay Basco, Rosie Perez, Jurnee Smollett-Bell, Mary Elizabeth Winstead, Ewan McGregor, Chris Messina. Aventura. Warner.

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